ARTIGO

Umbanda e homossexualidade

Vivemos tempos difíceis em se tratando de preconceito aos gays. Há quem use conceitos impostos por certas religiões, que teimam em não evoluir, para tratar o assunto como "tabu" ou "pecado". Felizmente, nem todas são assim...

por Marcos Piovesan

Na mesma época da Parada Gay de São Paulo, ocorreu a Marcha por Jesus, e, assistindo a uma reportagem no programa Profissão Repórter, da Rede Globo, vi uma entrevista em que alguém deu a seguinte opinião sobre os gays: “Não sou contra os homossexuais, sou contra a homossexualidade”. Eu me senti confuso, pois não entendi a diferença entre uma coisa e outra.

Por causa de discursos como esse, religiões perdem adeptos. Júnior*, 32 anos, professor, é um deles: “Meus pais são evangélicos, e o discurso na igreja é [...] que devo mudar o meu jeito de ser. Caso contrário, vou para o inferno. Como vou, então, frequentar uma religião que prega ódio contra nós?”

Há tradições religiosas que, no entanto, destoam desse discurso. É o caso de muitas vertentes de doutrina espírita, ou seja, que afirmam lidar diretamente com o espírito/alma – que não teria sexo. Kardecismo, candomblé e a mais nacional de todas as religiões, a umbanda, podem ser incluídos nesse grupo.

“Aceitamos os gays porque cremos que a religião não tem o direito de interferir na vida sexual de ninguém [...]. Cabe a nós, zeladores de santo, a função de orientar nossos filhos no que diz respeito à religião apenas”, explica Pai Daniel de Oxosse, 42.

“Nossa religião é livre e respeita a tudo e a todos. Quando o guia nos escolhe, não interessa para ele se somos pobres, ricos, negros, brancos, homens ou mulheres. Os orixás não são responsáveis pela vida sexual de seus filhos”, concorda Mãe Maria de Oxum, 35.

Um pouco de história

Há quem considere a umbanda apenas como uma doutrina, uma vez que ela se originou da junção de elementos de outras religiões – catolicismo, espiritismo, candomblé –, mas, na verdade, trata-se de uma religião independente, cujo nome, em quimbundo (língua do grupo banto, falada em Angola), significa “sacerdote” ou “curandeiro”.

Não se sabe a data exata de quando surgiu. O que se tem de mais concreto é que foi por volta de 1908, por intermédio do médium Zélio Fernandino de Moraes, que trabalhou com o guia Caboclo das Sete Encruzilhadas.

A partir daí, a religião começou a se organizar, passando para outras casas. No início do século 20, as primeiras casas tipicamente de umbanda começaram a surgir em São Paulo e no Rio de Janeiro. Não poucas eram fundadas por ex-escravos, que se identificavam com a herança do candomblé.

No ano de 1945, José Álvares Pessoa, dirigente de uma casa de umbanda, obteve a legalização da religião em todo o Brasil junto ao Congresso.

Doutrina

Na umbanda, o trabalho gira em torno dos orixás, que muitas histórias dizem ter tido uma vida sexual bastante movimentada e mesmo controversa, como Iemanjá, que se casou com o irmão, Oxalá. Tradicionalmente, não há nenhuma restrição de homens receberem entidades femininas, e vice-versa.

Diferentemente do candomblé, no entanto, os orixás não incorporam diretamente nos médiuns. São os guias, no papel de intermediários, que o fazem, sendo que cada guia pertence a uma linha espiritual chefiada por um orixá.

Há toda uma preparação para os rituais que ocorrem nos terreiros. Há o pai de santo ou mãe de santo, também conhecidos como babá, zelador, dirigente, diretor(a) de culto ou mestre(a), que coordena os trabalhos incorporando o guia principal da casa e saúda os orixás através de giras (sessões), nas quais trabalham espirítos de pretos--velhos, caboclos, baianos, crianças, ciganos, boiadeiros, marinheiros, exus e pombas-giras.

Por sinal, estive presente em uma casa de santo e percebi que muitos gays recebem as pombas-giras, entidades femininas, e, em transe, vestem saias, usam brincos, colares, etc.

Perguntei a Pai Luciano de Iansã, 32, o porquê. “O que eu percebo é que muitos filhos de santo gays têm uma maior afinidade com esses espíritos, uma espécie de identificação”, respondeu.

Fundamentos

Como acontece em outras as religiões, existem diferentes linhas de trabalho e de interpretação na umbanda e, por isso, há também muita variação nos fundamentos usados nos terreiros, mas normalmente há conceitos básicos que são praticados por todos, como, por exemplo:

·Existência de um Deus (Olorum) supremo, fonte criadora universal;

·Ensinamento de valores humanos básicos, como a fraternidade, o respeito ao próximo e, principalmente, a caridade;

·Culto aos orixás, que são manifestações divinas;

·Manifestação dos guias espirituais através da incorporação/transe de seus médiuns;

·Trabalhos mediúnicos como forma de estabelecer contato entre o mundo físico e o espiritual;

·Imortalidade da alma;

·Crença na reencarnação e na existência de leis cármicas.

Glossário

· Orixás: para a umbanda, são manisfestações do grande Deus Olorum; a palavra tem origem iorubá e designa um ser sobre-humano, ou um Deus;

· Médium: segundo a umbanda, é pessoa que tem capacidade para se comunicar com espíritos. A comunicação ocorre através da incorporação (receber o santo), da vidência (ver), pela audição (ouvir) ou, ainda, pela psicografia (escrever movido pela influência de espíritos). 

Curiosidade

O candomblé foi a religião que realizou o primeiro casamento gay do Brasil, mas, na umbanda, essas cerimônias também são feitas há algum tempo.

Para saber mais

Não existe uma “literatura umbandista” universalmente adotada por todas as casas. Alguns praticantes se utilizam de obras kardecistas, como O livro dos espíritos, de Allan Kardec, e livros que tenham estudos voltados para a mediunidade.

Para quem quiser saber mais, há também a obra Tudo o que você precisa saber sobre a umbanda, volumes I, II e III, e O livro da esquerda na umbanda, de Janaina Azevedo, disponíveis em www.universodoslivros.com.br. Por fim, outros livros são Os orixás na umbanda e candomblé, de  Wagner Veneziani Costa, Diamantino Fernandes Trindade e  Ronaldo Antonio Linares; e Umbanda – mitos e realidade, de Mãe Iassan Ayporê Pery.

Em São Paulo, a Faculdade de Teologia Umbandista (FTU) forma teólogos na religião e é reconhecida pelo Ministério da Educação, com diploma emitido pela USP. O site da faculdade é: www.ftu.edu.br.

* Todos os nomes são fictícios, para preservar identidades

Créditos das imagens:

Capa: Reprodução (barracaodoze.blogspot.com.jpg)

Matéria: Reprodução (casapaijoaquimdecambinda.blogspot.com.jpg)


Publicado em 27/09/2011.