POLÍTICA
por Caio Delcolli
Elaborada pelo deputado federal e líder da bancada evangélica João Campos (PSDB-GO), o mesmo autor do projeto de “cura gay”, a Proposta de Emenda Constitucional 99/2011 se encontrava, até o momento em que escrevemos esta reportagem, à espera da formação da Comissão Temporária na Seção de Registro de Comissões (SERCO(SGM)), da criação da Comissão Temporária na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados (MESA) e do encaminhamento na Coordenação de Comissões Permanentes (CCP). O andamento pode ser consultado aqui.
A PEC 99 acrescenta o inciso X ao artigo 103 da Constituição Federal e prevê caracterizar associações religiosas – grupos reconhecidos pela lei com caráter representativo – como instituições que poderão propor Ação Indireta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade de leis ou atos normativos. Na prática, quando essas entidades não concordarem com algo, poderão acionar o Supremo Tribunal Federal. Hoje, quem pode fazer isso hoje são apenas o/a Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, as Mesas das Assembleias Legislativas, governadores de estados e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo. As primeiras dúvidas para os LGBTs são: como ficam as decisões progressistas tomadas pelo STF recentemente, como a união estável homoafetiva? E os direitos que ainda precisam ser conquistados?
Estado Laico
“O maior problema da PEC 99 é que ela cria um privilégio, uma diferenciação arbitrária, já que abarca somente associações religiosas, o que inclusive viola a laicidade do Estado ao vincular um direito à defesa de uma religião”, diz Paulo Iotti*. “Associações de direitos humanos e defesa de minorias, por exemplo, não são mencionadas”.
Independentemente disso e do 19º artigo da Constituição, que prevê a laicidade do Estado, Campos dá o seguinte embasamento à PEC 99 no texto da justificativa: “O movimento evangélico cresce no Brasil, portanto, associado ao sentimento de liberdade cívica que vem à luz com a República, onde a Constituição como norma fundamental assume grande significado político, tornando-se, sobretudo, instrumento de garantia individual e de limitação do poder do Estado, e como tal, passa a iluminar o sistema jurídico nacional. Neste contexto, não há como não se reconhecer o mérito dos Evangélicos brasileiros em coadjuvar na consolidação de princípios no cerne da Constituição, como garantidores da liberdade de culto e de religião”.
Segundo Iotti, no entanto, um Estado verdadeiramente laico deve desconsiderar argumentos puramente religiosos. “Estado laico é aquele que, além de ser formalmente separado de instituições religiosas, respeita a liberdade de crença e descrença e que não permite que fundamentações religiosas influenciem os rumos políticos e jurídicos da nação”, diz. “Temos de superar esse ‘Estado laico à brasileira’ entre nós instaurado, no qual a laicidade é solenemente ignorada ou confundida com mera separação formal entre Estado e instituições religiosas. Laicidade vai muito além disso”.
“Isso tudo poderia ser mais bem trabalhado se os brasileiros se interessassem mais por política e compreendessem a importância do Estado laico”, comenta Renato Hoffmann**. “Infelizmente, os partidos políticos querem tirar proveito das massas e acabam por fomentar a mistura Estado-religião, e a confusão se faz total”.
Se for aprovada
Os julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez concluídos, não podem ser alterados. Uma matéria de mesmo conteúdo ou que proponha o oposto do que já foi estabelecido não tem êxito. “Caso ocorra um fato novo, que contenha uma relevância indiscutível e que tome os fundamentos anteriores expostos sem razão ou os faça inverídicos, essas matérias já julgadas podem ser revisadas”, explica Hoffmann. “Os ministros gozam de autonomia e imparcialidade em suas decisões: não estão sujeitos às gritarias das bancadas evangélicas ou pressões políticas.”
Se aprovada a PEC, no entanto, as associações religiosas terão autonomia para elaborar novos argumentos para pedir a superação das decisões já tomadas pelo STF – e se uma dessas decisões contrariar diretamente os preceitos dessas entidades religiosas? “O STF continua a ser quem irá decidir”, explica Iotti. “Mas elas [as associações] poderão ficar pedindo a revisão do julgamento anterior indefinidamente até eventualmente conseguirem o que querem!”.
É importante lembrar a influência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Essa entidade envia advogados para serem ouvidos pelo STF, mas isso não caracteriza um privilégio da Igreja Católica. “[É] um segmento da sociedade com representatividade que tem, por algum motivo, interesse na causa”, explica Hoffmann. Os advogados da CNBB têm suas manifestações ouvidas, mas não podem propor ação. Assim, eles tão-somente contribuem com o contraditório, o que é fundamental em um processo.
O risco, portanto, está claro diante da mudança jurídica que a PEC 99 causará se for aprovada – e João Campos se firma mais uma vez como alguém que deve ser observado pela comunidade LGBT. “[Ele] é uma síntese dos evangélicos, mas também é uma síntese dos políticos. Ele não é pior do que aqueles que votaram nele. É apenas o reflexo”, comenta Hoffmann.
*Paulo Iotti é advogado, professor universitário, Mestre em Direito Constitucional e ativista pró-direitos LGBTs.
**Renato Hoffmann é graduado em Direito, pesquisador e ativista pelos direitos LGBT.
Imagens: Reprodução