ARTIGO
por João Marinho
Tenho para mim que isso revela um desconhecimento dos discursos com os quais convivemos todos os dias – discursos falados, escritos e na forma de imagens.
Em primeiro lugar, é um erro pensar que os héteros não afirmam sua sexualidade.
Em nossa cultura, a heterossexualidade é reafirmada o tempo todo: cada vez que uma propaganda de cerveja mostra homens embasbacados por lindas mulheres; em cada capa das centenas de revistas que temos, das de noivas às masculinas; cada vez que um programa de tevê promove namoros (héteros); até quando se realiza uma cerimônia de casamento tradicional.
Sapatos e automatismos
Ora, nem tudo que dizemos, dizemos por palavras. Se os héteros não sentem necessidade de “assumir a heterossexualidade” formalmente, isso só acontece porque eles não precisam: a abundância de signos, modelos, tradições e imagens já faz isso por eles. Fica tudo meio que “automático”.
O automatismo só é quebrado quando o homossexual (ou o bi) se declara assim – e, afinal, o que é estar no armário, senão fazer uso desses elementos que afirmam a heterossexualidade? Ninguém poderia permanecer no armário, pelo menos este que conhecemos, se não existisse tal automatismo.
Costumo ilustrar a situação da seguinte forma: é como se nossa sociedade fosse uma loja de sapatos que vendesse apenas um número, o 40, por exemplo. Quem sentirá necessidade de ir até os donos e solicitar a venda de outros números: as pessoas calçam 40 ou as que calçam 42?
Nós, gays e bis, somos os que calçam 42. Os héteros, que calçam 40, estão confortáveis: não somente os sapatos lhes servem, como a propaganda da loja, os cartazes e os vendedores já estão preparados para recebê-los.
Para os que calçam 40, pôr o sapato já basta – mas está claro que, do anúncio à confecção do pedido, a loja ressaltará continuamente que... Vende o número 40. Então, como que os héteros não afirmam sua sexualidade?
Dois pesos, duas medidas
Já o “discurso da privacidade”, que se manifesta em frases do tipo “o que faço entre quatro paredes é assunto meu” e similares, soa interessante, mas logo revela um lado capenga.
Tudo bem que sua vida é problema seu – mas se um homem hétero, por exemplo, apresentar uma mulher como sua namorada, isso não é tido como absolutamente normal? Então, o relacionamento também tem um lado público – e por que um homem gay ou bi apresentar outro homem como seu namorado tem de ser encarado como exposição desnecessária e negativa do que acontece “entre quatro paredes”?
Em ambos os casos, há uma afirmação subjacente de identidade e de orientação sexual. A diferença é que a primeira é aceita e a segunda, nem sempre.
Portanto, o que se esconde por trás desse discurso é o preconceito e a dificuldade de reconhecer a homossexualidade como legítima, seja por parte dos outros, seja por parte de quem profere o discurso.
De corpo e alma
Não legitimar a homossexualidade é também uma forma curiosa de afirmação hétero, e aqui chegamos onde eu queria.
Para mim, a masculinidade do homem heterossexual (ainda) é fortemente calcada no que chamo de negação do corpo do homem, que nada mais é que o desprezo por uma relação mais íntima com seu próprio corpo e com os de seus semelhantes. Nessa equação, desqualificar a homossexualidade ratifica a condição heterossexual.
Vamos deixar mais claro. No “meio ambiente” hétero masculino, qualquer coisa é motivo para se evocar, de forma depreciativa, a homossexualidade. Uma olhada “diferente”, um movimento “suspeito”, uma declaração “estranha” – e pronto: lá está o pessoal chamando o outro de “veado” e fazendo alusão a nádegas, sexo anal, etc.
Claro que muitas dessas brincadeiras são despretensiosas – mas será que sempre são? Não raro, elas fazem uso de uma chave negativa: espera-se que o outro negue a “veadice”, e, quanto mais bravo ele fica, mais gostosa a brincadeira.
Por que isso se relaciona a uma negação do corpo masculino? Porque, socialmente e culturalmente, homens héteros não podem se tocar, achar o outro bonito, abraçar-se com intensidade ou demonstrar carinho com mais fervor, salvo em raras ocasiões.
Em outras palavras, não podem manter uma relação de intimidade com o corpo masculino. As brincadeiras que evocam a homossexualidade podem ser, e muitas vezes são, manifestações de um policiamento que se dissimula entre os homens.
Além disso, como o corpo do outro é um duplo do corpo do próprio sujeito, a negação tem um efeito bumerangue.
Para mim, não é por outro motivo que há tantos homens héteros com uma sexualidade quase exclusivamente centrada no pênis ou que se sentem inseguros se suas mulheres apenas se propõem a passar a mão em suas bundinhas...
Usando o potencial
Nesse sentido, considero uma vantagem ser gay e assumido: posso beijar e abraçar meus outros amigos gays, tocar neles e não ter medo de manifestar meu carinho e meus sentimentos.
É claro que nem todos os gays conseguem agir assim ou têm esse tipo de consciência. Ademais, há felizmente alguns homens héteros que têm quebrado os tabus.
Acredito, porém, que os gays que usam seu potencial e esses héteros pioneiros têm muito, sim, a ensinar aos homens héteros de forma geral, que não percebem como a negação do corpo masculino lhes tira uma dimensão bela e importante de sua humanidade.
Se, neste artigo, esclarecemos por que socialmente há uma necessidade de que a homossexualidade seja assumida, penso que também é correto dizer que os homens héteros precisam romper com esse estado de coisas. Precisam – também – sair do armário.
Artigo inicialmente publicado no site www.armariox.com.br. Para esta versão, algumas alterações foram incluídas.
Publicado em 22/09/2011.