ARTIGO

Sobre meninas e lobos

 

“Tenho uma dúvida. Há anos, casei com uma mulher na tentativa de ‘curar’ minhas tendências homossexuais. Depois que me separei, no entanto, nunca mais tive qualquer contato hétero – mas, às vezes, gosto de ‘humilhar’ meu namorado, dizendo coisas como ‘abre sua bocetinha pra eu meter toda’, ‘é assim que macho gosta de comer boceta de moleca’, etc. Isso seria um problema? Será que o ‘fantasma hétero’ ainda quer invadir nossas fantasias?”.

 

por João Marinho

A forma de começar este artigo não é usual, mas o depoimento acima, enviado por um leitor, é tão interessante que merecia ser utilizado como introdução.

O aspecto crucial é que ele toca na problemática dos gêneros, tão discutida entre os gays, sobretudo na militância, na qual normalmente existe uma oposição ao que se convencionou classificar como uma transposição dos papéis oriundos do machismo e/ou sexismo para a realidade homo: o ativo é o “macho”; o passivo, a “fêmea”.

Para os mais radicais, mesmo a preferência unilateral pela passividade ou pela “atividade” já pode ser vista por esse prisma.

No entanto, diante desse panorama, é possível entender o questionamento do leitor: ao tratar o namorado de forma “humilhante” e no feminino, ele necessariamente reforçaria o machismo, o sexismo, os estereótipos? A atitude deve ser entendida necessariamente como retrógrada?

 

Um novo ângulo

 

A meu ver, não. Fantasia é fantasia, e, sob certo ponto de vista, exercitá-la nesses termos pode até ter algo de libertador.

Vou tomar a liberdade de relatar a experiência de um amigo próximo. Carinhoso, ele começou a estranhar quando alguns rapazes com quem saía, autodeclarados héteros (não vou entrar no mérito), tratavam-no no feminino, diziam que suas nádegas “pareciam de mulher” ou, em meio a um cafuné, suspiravam que ele era “bem feminino”. Isso sem falar nos que, durante o sexo mais selvagem, utilizavam expressões menos lisonjeiras como parte da excitação.

No entanto, posteriormente, avaliamos que, na verdade, o que ocorria eram elogios. Aqueles rapazes, héteros ou bissexuais, tinham como destinatário primeiro de seu desejo o sexo feminino. Seria, portanto, uma vantagem para meu amigo ter algo em comum com as mulheres – e um algo “a mais”, digamos assim.

O ponto é que seus parceiros não falavam de uma mulher em si – nem dava para esse amigo se passar por uma –, mas de uma série de características que se associa ao feminino por “tradição”. As nádegas “pareciam de mulher” porque eram carnudas e redondas. Ele era “bem feminino” porque era terno e carinhoso. Tudo isso visto como positivo por seus parceiros.

 

Transformação

 

Também descobrimos que pode ser interessante e divertido brincar com os papéis tradicionais de gênero. É o que fazem, por exemplo, os homens que usam calcinha.

É aí que aparece a ideia de uma libertação. Na verdade, tais pessoas podem muito bem não ter uma atitude “conformista” para com aqueles papéis, mas se apropriar deles e transformá-los a seu bel-prazer em uma “distorção” que tem, no bojo, a denúncia da própria artificialidade e arbitrariedade dos mesmos.

Existe, portanto, um deslocamento aí que é de tratar o outro no terreno do simbólico, até como uma deliciosa forma de humilhação erótica e dominação/submissão – e parte do prazer está justamente em saber que o outro não é aquilo, mas se faz passar por aquilo unicamente para incrementar o prazer erótico e mesmo como cumplicidade em relação às fantasias do parceiro. Sob esse prisma, minha conclusão é: pode continuar exercitando seu desejo à vontade com seu namorado, tomando o cuidado, claro, de praticar o sexo seguro.