ARTIGO

Misoginia gay: verdade ou mito?

"Isso eu não faço, porque é coisa de mulherzinha". Há muitas maneiras imperceptíveis de demontrar a crença de que tudo que é feminino é inferior. Isso levado ao extremo e de forma intensa, como qualquer outro tipo de preconceito, é denominado misoginia.

por Claudia J. Rondon

Sim, há muitos homens gays que são considerados misóginos porque abominam o que é feminino com todas as forças.

Entretanto, na visão de João Hora, professor da Universidade Federal Fluminense e autor de estudos sobre relações raciais e de gênero, política social e Aids, existem expressões variáveis de misoginia – que, por sua vez, não é nem um fenômeno recente, nem localizado, muito menos específico desses gays: “As consequências chegam à interdição do acesso da mulher à educação, ao trabalho, como se vê mais em algumas culturas do que em outras. Pode-se gerar, inclusive, uma interdição do próprio prazer sexual da mulher. Há muitas sociedades nas quais não se espera que ela chegue ao orgasmo”.

Vítimas e autores

Para Hora, a relação entre ser gay e ser misógino está mais vinculada a uma questão cultural global do que a uma questão de identidade ou orientação sexual: “Os gays são homens e não são elementos separados da cultura em que vivem. São influenciados pelos valores com os quais convivem, inclusive na discriminação contra as mulheres”.

Esse raciocínio nos permite ir mais longe e ampliar a discussão sobre outros tipos de preconceito. Por mais incoerente que possa parecer, “os grupos discriminados são tão capazes de produzir discriminação quanto aqueles que não são discriminados”, diz o professor.

Sim, meu amigo. Como você já deve ter percebido, existem gays altamente preconceituosos – não obstante sejam, eles próprios, vítimas de preconceito. Há gays, por exemplo, que são racistas ou xenófobos*, por mais que tenham enfrentado os desprazeres de um olhar de desdém, uma piada de mau gosto e até espancamentos.

Casos como esses reafirmam o raciocínio de Hora, o de que a misoginia estaria muito mais relacionada ao espectro cultural de um indivíduo do que ao sexual.

Gays versus lésbicas

Nesse aspecto, as opiniões de Hora e Alexandre Saadeh, professor de psicologia da PUC-SP, especialista em sexualidade e médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, são muito parecidas.

Por sinal, para Saadeh, é curioso, inclusive, observar que ainda haja misoginia de homens homossexuais contra mulheres homossexuais (lésbicas). “É isso que se vê na prática diária, nas brincadeiras [...] No começo, tudo era do ‘espectro homossexual’. Por isso, todos os grupos se uniram. Agora, que as coisas estão amenizadas, existem os preconceitos entre os grupos”, diz ele – mas calma, leitor!

Antes de sair lamentando e declarando que os gays são necessariamente misóginos, é preciso aprofundar a história e perceber sinais de mudança que apontam para um futuro bem mais promissor – e para um presente muito mais leve.

Confissões de adolescentes

Na opinião de Saadeh, hoje, a convivência entre o homossexual e a sociedade é melhor: “Apesar de ainda haver preconceito, ele diminuiu muito”.

Para ele, principalmente nas últimas duas ou três décadas, é comum ver, por exemplo, a afinidade entre as adolescentes e os homens gays: “Basta prestar atenção na ocorrência do ‘melhor amigo gay’. Os homossexuais masculinos gostam disso. Há uma grande amizade na geração mais jovem [...]. O pessoal na década de 50, 60 já via com outros olhos, mas hoje é diferente. Há uma aproximação muito grande entre homens gays e mulheres”.

De volta para o futuro

De acordo com artigo publicado por Eliane Ventorim, estudante do Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, da Universidade Federal do Espírito Santo, a misoginia tem origens antiquíssimas.

Conforme o estudo, intitulado Misoginia e santidade na Baixa Idade Média: os três modelos femininos no Livro das Maravilhas, de Ramon Llull, “a mulher era considerada um ser muito mais próximo da carne e dos sentidos, e, por isso, uma pecadora em potencial. Afinal, todas elas descendiam de Eva, a culpada pela queda do gênero humano [...]. A partir do século 11, com a institucionalização do casamento pela Igreja, a maternidade e o papel da boa esposa passaram a ser exaltados. Criou-se uma pedagogia da salvação feminina, a partir basicamente de três modelos femininos: Eva (a pecadora), Maria (o modelo de perfeição e santidade) e Maria Madalena (a pecadora arrependida). Os três modelos femininos difundidos por toda a Idade Média (Eva, Maria e Madalena) deixam claro o papel civilizador e moralizador desempenhado pela Igreja Católica ao longo de, aproximadamente, mil anos de formação da sociedade ocidental”.

Ora, grande parte da cultura ocidental foi influenciada pela moral judaico-cristã, o que explicaria por que, mesmo quando lidamos com homossexuais, é possível odiar mulheres.

Entretanto, na opinião de João Hora, o futuro deve ser mais esperançoso, já que, segundo ele, a misoginia não está se intensificando entre os grupos: “Acho que, em partes, a força dos movimentos feministas, inclusive entre os homossexuais do sexo masculino, acalenta cada vez mais uma imagem positiva da mulher. Esse é um movimento também muito complexo, porque sabemos que, na modernidade, vemos também alguns movimentos de retrocesso. Basta ouvir algumas músicas de rap e funk em que a mulher é degradada. Existe uma contradição”.

Mesmo assim, para Hora, há a tendência de se caminhar em direção a uma cultura mais tolerante. “O movimento homossexual tem ampliado as discussões, por exemplo, como o que vemos com a evolução da Parada Gay [...]. Vejo um avanço na direção contra todos os tipos de discriminação e preconceito”, conclui.

* que tem aversão a estrangeiros

 


Publicado em 01/03/2011.