POLÍTICA

Entre a cruz e a espada

O ataque evangélico a Fernando Haddad pelo “kit gay” e o risco de instrumentalização dos homossexuais.

por João Marinho

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Os evangélicos fundamentalistas, esfomeados de poder, não se contentam com as benesses e subserviências do governo Dilma e dos petistas: ainda querem fazer valer sua intolerância e a imposição de seus costumes – e já começaram a atacar Fernando Haddad, candidato do PT à prefeitura de São Paulo, pela criação do “kit gay”, ou, melhor dizendo, Kit Escola Sem Homofobia.

Jogo do absurdo

É óbvio que deve fazer parte do papel político de qualquer gay consciente lutar contra esse novo levante fundamentalista. Não apenas porque não há nada errado com a ideia de produzir um kit para combater o bullying homofóbico, mas também porque os vídeos que “vazaram” na internet, que hoje todos sabemos pertencentes ao kit, em nada agridem crianças, adolescentes ou quem quer que seja – e, afinal, foi o kit suspenso por nossa “querida” presidente, Dilma Rousseff.
Não basta terem conseguido, via chantagem política e moeda de troca pela cabeça do então ministro Antonio Palocci, barrar uma política pública visando a conter a violência de que são vítimas milhares de crianças e adolescentes lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs), ainda querem os evangélicos usar o kit que eles mesmos ajudaram a suspender para derrubar um candidato petista?
É um despautério, um escândalo – e todos nós devemos combater o uso instrumental das nossas demandas e defender o kit contra essa interferência religiosa e de má-fé que impregna hoje o Estado brasileiro.
 
Usados e abusados

No entanto, é preciso um cuidado adicional, porque podemos cair no extremo oposto e sermos instrumentalizados pelo PT. Defender o kit, certo. Combater os fundamentalistas, certo – mas daí a fazer campanha para Fernando Haddad, vai uma boa diferença.
Não nos esqueçamos de que todo o imbróglio que envolveu o Kit Escola Sem Homofobia foi obra de má gestão do próprio Haddad e de sua equipe. Cansei de ver figuras da militância LGBT pedirem ao Ministério da Educação para que o conteúdo do kit fosse divulgado e discutido, e a equipe do ex-ministro fez tudo na surdina. Sem discussão, sem divulgação, sem transparência, como queríamos.
No fim das contas, isso possibilitou os ataques proferidos por Bolsonaro e aliados, porque qualquer coisa que se dizia sobre o kit passava por verdade, uma vez que ninguém sabia, de fato, o que havia dentro dele.
Quando o conteúdo vazou, e após o veto de Dilma, Haddad foi a imagem da inconsistência. Pelo que me lembre, numa hora, havia dito para o movimento que o kit estava OK e seria liberado. Depois, o kit não estava finalizado. Depois, estava sendo refeito. Depois, foi exibido o kit incorreto para Dilma por parte de políticos evangélicos da índole de Anthony Garotinho, o que nos dispensa explicações. Depois, ele, Haddad, não o havia visto.
Qual a verdade? Ele viu ou não? E se não viu, como podia saber que aquele kit era incompleto ou que o visto por Dilma era o errado? E se Dilma viu o kit errado, como, de forma incompetente, para não dizer maligna, em vez de procurar ver o certo e tomar uma decisão pautada na realidade, simplesmente o vetou de antemão, na tentativa de segurar um ministro suspeito de atividades ilícitas?

Cruz e espada

Tenho memória boa para essas coisas. Então, penso que a posição do movimento LGBT e dos gays politicamente conscientes deve ser de neutralidade e de defesa única e exclusiva do Kit Escola Sem Homofobia.
Sair em defesa política direta de Haddad e fazer campanha para ele é ser instrumentalizado novamente, só que pelo PT e um de seus ex-ministros mais incompetentes: nós nos converteríamos em massa de manobra e, sob o argumento de combater os evangélicos, defenderíamos um dos que mais contribuíram, por sua incompetência, para a suspensão do citado kit. Trocaríamos a cruz pela espada.
Também convém esperar antes de entrar nessa briga, porque resta inequívoco que o PT está cada vez mais comprometido com os fundamentalistas, e não é nada difícil que, à guiza de neutralizar os ataques vindos do “povo de Deus”, “conversem” com eles e deem uma moeda de troca pelo silêncio. Sabemos que nós, gays, somos as principais mercadorias nesse jogo dentro do governo Dilma...
Resultado final: terminaríamos por defender quem contribuiu para a suspensão do kit e ainda ficaríamos do lado de alguém que faria, mais uma vez, acordo com os fundamentalistas. A mesma arapuca armada durante a eleição de Dilma Rousseff e na qual este autor confessa que caiu. ?isso que um movimento independente e crítico deve fazer? A meu ver, não.
Portanto, esta é a minha posição: defender o kit e criticar e combater os evangélicos pela instrumentalização dele, sempre. Sair em defesa direta de Haddad e fazer campanha para ele e para o PT por causa disso, jamais.
 


Publicado em 06/03/2012.