ARTIGO

Gays em família

 

Uma simples mudança de perspectiva mostra que são as religiões homofóbicas, e não a homossexualidade, os verdadeiros vilões por trás da famigerada “destruição” do núcleo familiar.

 

por João Marinho

Escrevo estas linhas pouco depois do Dia dos Pais. Como muitos que ainda têm a sorte de ter um pai, um pai vivo e um bom pai – nem sempre é possível ter tudo isso, e, para quem não tem, admito que o dia não tenha a menor relevância –, passei-o com o meu, em um jantar em família.

No meu caso, essa tradição ganha uma maior importância, já que não sou um indivíduo “muito família”. Vejo a noção que temos sobre essa “entidade” um tanto quanto artificial. Artificial, mas construída de forma a ter uma cara natural e fundamental, como se o “modelito nuclear” (pai, mãe e filhos) fosse o único capaz de garantir carinho, proteção e indivíduos saudáveis. Coisa que, basta uma olhada na história e mesmo nos dias de hoje, se revela falsa.

 

Isso, porém, não significa que não valorize o fato de ter uma família. Apenas que minha noção a respeito dela, que passa primordialmente pelo afeto – não acredito que o “sangue” seja, por si só, um elemento agregador – é diferente, e me permito o direito de exigir que o meu conceito seja também respeitado. Afinal, é por ele que pauto toda a atenção que dispenso a meus pais e minhas irmãs.

No entanto, na esfera pública, a atitude de respeito às diferenças entre as famílias e entre os conceitos de família é rara, especialmente quando analisamos o comportamento dos religiosos, notadamente evangélicos e católicos, mais fundamentalistas.

Para eles, existe só um tipo de família: a nuclear, e, em cima disso, justificam uma série de oposições a direitos que nós, enquanto homossexuais, lutamos para ser reconhecidos, como o de casar e o de ter, ou adotar, nossos filhos. Bradam eles que vamos destruir a “família” – mas me pergunto: qual família?

Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais não são alienígenas que caíram de um disco voador. Também não brotam da terra. Temos nossas famílias, nossos pais e mães, parentes – e não é raro que sejamos extremamente dedicados a eles.

Muitas vezes, é uma dedicação imerecida, pois, ao contrário de outros grupos estigmatizados, a família geralmente é o primeiro lugar em que o gay enfrenta o preconceito: escondemos nossos amigos, trocamos mensagens cifradas, inventamos desculpas e eventos que não existem, sofremos calados as decepções amorosas, quase nunca apresentamos nossos namorados, evitamos nos informar sobre DSTs ou tomar conselhos e somos assombrados pelo medo de nossos pais descobrirem, se decepcionarem e nos punirem – o que, muitas vezes, acontece.

Tenho amigos que já passaram por perseguição dentro de sua própria casa, outros foram expulsos, surrados, outros ainda chegaram a ter seus talheres separados. Um quarto grupo, obrigado a fazer terapia. Em comum, essas histórias têm um fato: os pais, via de regra, eram profundamente religiosos e acreditavam agir corretamente para livrarem os filhos do “mal” da homossexualidade.

Diante desse quadro, é até surpreendente que gays e afins ainda tenham tanto amor por suas famílias e o desejo de integração. Meu pai e minha mãe nunca chegaram a esses extremos, mas é fato que, por motivos sociais e religiosos, ainda não estão confortáveis com minha homossexualidade – e, no fim das contas, na minha e em outras famílias, tudo isso atua contra a nossa felicidade e contra os laços que nos unem a nossos parentes.

Quem atua, então, na destruição das famílias, especialmente daquelas com membros homossexuais e afins? Os gays ou as religiões homofóbicas? Creio que a resposta já ficou suficientemente clara.