OPINIÃO
por João Marinho
Espanha, Canadá, África do Sul, Suécia, Noruega. A lista de países que regulamentam o casamento gay só tem crescido.
Casamento, sim – e não união civil ou parceria. Em tais países, a lei é igualitária. Virtualmente, são garantidos todos os direitos de que os héteros desfrutam quando assinam o papel no cartório. Trata-se da mesma instituição.
Isso não significa, porém, que o grupo dos opositores esteja desistindo. Nos Estados Unidos, dezenas de estados baniram o casamento entre pessoas de mesmo sexo de suas constituições. Outros, mais radicais, impediram até mesmo qualquer outra forma de reconhecimento de tais uniões: nem uma parceriazinha é possível.
Lá, como cá, o lobby dos opositores se baseia em argumentos que evocam a natureza, a geração de descendentes e a religião para defender que casamento é “apenas entre homem e mulher”.
Podemos encontrar essa assertiva mesmo entre quem defende algum tipo de reconhecimento: as uniões gays podem até desfrutar de alguma forma de legalização pelo Estado – desde que não sejam chamadas ou definidas como casamento.
Existe alguma lógica nisso tudo? Discutiremos aqui os três principais argumentos contra o casamento gay – e demonstraremos o quanto eles carecem de fundamento.
Parece até incrível que, num mundo com mais de 6 bilhões de habitantes, haja tanta preocupação com a procriação. Mais impressionante é que tal preocupação só surja quando se evoca o casamento gay, já que nem todos os casais héteros têm, decidem ter ou podem ter filhos – quando heterossexuais idosos ou com problemas de fertilidade se casam, ninguém questiona seu papel na “preservação da espécie”.
Analisemos o argumento com profundidade, no entanto. Parece haver lógica, mas, na verdade, existe aqui uma mistura de conceitos.
Em primeiro lugar, é simplesmente equivocado relacionar o casamento, qualquer que seja ele, à preservação natural da espécie humana, como se uma coisa levasse à outra, ou fossem ambas interdependentes.
Vamos esclarecer: animais, plantas, bactérias, vírus não se casam, mas se reproduzem e se perpetuam – por sinal, podem se reproduzir de formas bem diversas da “tradicional” reprodução sexuada macho-fêmea (do hermafroditismo à mitose, passando pela partenogênese).
Dessa feita, em termos naturais e de preservação da espécie, pouco importa que exista a instituição do casamento. Se o casamento hétero fosse abolido em todo o mundo, a espécie humana ainda procriaria, bastando que homens solteiros se relacionassem sexualmente com mulheres solteiras.
A verdade é que o casamento é uma instituição exclusivamente hu-ma-na, que nada tem a ver com o mundo natural. Ele é, antes de tudo, histórico-social – e mais: é o sexo heterossexual, e não o casamento heterossexual, que é imprescindível à geração de descendentes.
Sendo o casamento uma instituição histórico-social, e, portanto, criada por humanos, o conteúdo do conceito é dado exclusivamente pelos humanos. A prova é a existência do casamento civil. Difícil fazer uma relação direta entre fazer sexo para engravidar e assinar o nome em frente a um juiz de paz.
Assim, os seres humanos podem chamar de casamento o que quiserem, inclusive a união entre pessoas de mesmo sexo. Em termos legais, se o que existe na lei é um contrato civil que recebeu o nome de casamento e a lei habilita casais de mesmo sexo a estabelecer esse mesmíssimo contrato, não existe argumento plausível para chamá-lo de outra forma.
Este segundo argumento aprofunda o primeiro. Se aquele entende, como prova da suposta “ordem natural” do casamento hétero, a capacidade de gerar descendentes, o segundo argumento aprofunda esse conceito e joga todas as fichas na reprodução para sustentar que “se toda a humanidade fosse gay, desapareceria”. Será?
Como dissemos, esta é praticamente uma reedição do argumento anterior. Aqui, no entanto, o equívoco é de outra ordem: não é relacionar a instituição do casamento ao mundo natural – o que vimos ser equivocado –, mas acreditar que a heterossexualidade seja condição fundamental para a geração de descendentes e, portanto, base necessária do casamento.
A verdade, porém, é que ela não é. Lembremos, antes de tudo, o que define orientação sexual: é a atração físico-afetiva, o desejo erótico orientado a outrem, de determinado sexo.
Enquanto orientação sexual, a heterossexualidade não se confunde com o ato sexual hétero. Ela é, antes, a atração que nasce entre homens e mulheres héteros e que pode ou não levar ao ato consumado. Quando muito, ela apenas aumenta as chances de esse acontecer e de haver filhos depois de nove meses – já que o desejo, sozinho, não gera descendentes.
Portanto, é a relação sexual objetiva, desprotegida e em período fértil entre um homem e uma mulher que produz descendentes, e não a heterossexualidade per se – e se excluirmos outras formas de reprodução, como a fertilização in vitro. É aqui, porém, que o “pode ou não” revela sua importância.
Ao longo da vida, as pessoas muitas vezes praticam relações sexuais não-condizentes com suas orientações sexuais primárias: são muitos os gays que já se relacionaram com mulheres, lésbicas que já foram casadas com héteros, homens héteros envolvidos em experiências de troca-troca ou relações com travestis, ou mulheres héteros que agarraram uma amiga em um “momento de fraqueza”.
Resulta disso tudo que: (1) apenas haver héteros não é garantia de reprodução e preservação da espécie. Basta apenas que os héteros decidam não ter, não possam ou não estejam férteis para ter filhos; e (2) gays são homens e lésbicas são mulheres. Desde que não haja problemas de fertilidade, isso os credencia amplamente a procriar, bastando para isso que se relacionem entre si, mesmo eventualmente, sem que abram mão de sua orientação sexual por isso – e quantos não têm filhos biológicos, afinal?
Portanto, a humanidade não desapareceria. Certamente, no espectro da conjectura, essa condição de “humanidade gay” levaria a uma estrutura social que incluiria o sexo hétero como forma de reprodução, em cerimônias específicas. Para não dizer que isso é ficção barata, basta um estudo nas práticas sociais dos etoros. Povo de prática homossexualista, os etoros reservam o sexo hétero a apenas algumas ocasiões específicas que não passam de alguns dias por ano. Isso não os impediu de se reproduzirem e se manterem, existindo até hoje.
Outros povos, como antigos gregos e japoneses, também podem ser chamados ao banco de testemunhas, já que fizeram do homem de prática bissexual o personagem que atende a uma prática homossexual ritualizada e relacionada à formação do indivíduo e uma prática heterossexual para geração de descendentes e manutenção da sociedade.
Esse é um erro crasso de muitos religiosos, mas especialmente de cristãos, que são, no Brasil e em outros países ocidentais, os maiores opositores ao casamento gay: considerar o casamento religioso, ou seja, a união frente a uma divindade ou entidade espiritual, como um mandamento divino em si mesmo. A divindade ordenou o casamento hétero, e, portanto, o gay deve ser evitado como rebelião a Deus.
Bom, isso pode ser verdade – mas é uma “verdade restrita”, efetiva apenas para os cristãos, dentro do sistema de fé deles e dentro de uma cerimônia particular.
O casamento religioso em si, entendido como união frente a uma divindade qualquer, existe anteriormente ao advento do cristianismo e dos mandamentos que os cristãos creem ter partido de seu Deus. Evidentemente, também não foi e nem é exclusividade cristã.
Adoradores de outros Deuses e mesmo membros de religiões ateístas, como o satanismo, também se casam de forma religiosa, em cerimônias que são dedicadas a esses outros Deuses ou a forças naturais e humanas, mas não ao Deus que os cristãos reputam como verdadeiro.
Por isso, nenhum desses outros casamentos pode ser entendido como uma obediência ao "mandamento" do Deus cristão, personagem que mesmo inexiste nesses outros cultos.
A conclusão é que o argumento religioso para evitar o casamento gay, do ponto de vista de um fundamentalista cristão, teria de incluir uma incitação polêmica para se sustentar: se tais outros casamentos não são uma obediência a Deus, também deveriam ser evitados.
Os cristãos deveriam não apenas tentar impedir o casamento de pessoas de mesmo sexo, mas também os casamentos heterossexuais de wiccanos, umbandistas, candomblecistas, judeus, muçulmanos, budistas, etc., uma vez que são uniões celebradas em obediência ao que consideram “divindades falsas” ou “falsos cultos”. São rebeliões também.
Tal, porém, não ocorre – talvez porque, nessa hora, os fundamentalistas se recordem de que vivemos num Estado laico, que garante liberdade de credo.
Ora, não dá para ter dois pesos e duas medidas: ou se aceita que todos os casamentos não-cristãos são inerentemente inválidos e falsos; ou se aceita o princípio do respeito à liberdade religiosa que, por definição, inclui o respeito ao casamento religioso gay. Afinal, se os membros de uma determinada fé – ainda que seja um credo cristão heterodoxo – creem que a divindade daquela religião não apenas apoia a homossexualidade, como permite que homossexuais se casem, que argumento teriam os fundamentalistas para interferir? Acaso querem eles o monopólio sobre Deuses em que não creem?
Portanto, nem o casamento hétero como espelho do “mundo natural”, nem o argumento “reprodutivo”, nem o “divino” pode ser usado como argumento para evitar a união gay com esse nome
Não há um argumento sustentável racional, lógico ou religioso para nos negar esse direito quando o assunto é tratado com a abrangência com que se deve – e agora, que você sabe disso, que tal informar as pessoas ao seu redor?