ARTIGO

Anatomia do ciúme - parte 2 - final

 

Relacionado ao valor que damos a nós mesmos, o ciúme pode ser um sentimento natural, de proteção do indivíduo e da personalidade, mas está longe de ser o tempero do amor

 

por João Marinho

Na última semana (Anatomia do ciúme - parte1), falamos sobre o combustível do ciúme. Especulamos que, num namoro, não seria o medo de perder a pessoa, mas o de ser traído.

No entanto, como, às vezes, também temos ciúme de quem não gostamos – o caso do “capacho”, isso não se aplica. Como o ciúme também acontece entre amigos, vale a mesma observação, e também não é possível ser “traído” por objetos, ou ainda bichos de estimação.

Então, qual o verdadeiro combustível? A resposta está na intersecção entre o medo da traição do namorado, o desconforto de ter um amigo dando mais atenção a outra pessoa, ou o receio de ver suas coisas manchadas, rasgadas, malcuidadas.

Ciúme tem a ver com receio de sermos atingidos naquilo que prezamos e que se constitui parte de nossa autoimagem e, portanto, de nossa autoestima. Nós construímos nossa autoimagem e nossa autoestima a partir de nossos relacionamentos, da maneira que nos vestimos, das coisas que usamos, dos livros que lemos, das filosofias que adotamos.

Se você pensar bem, é no receio de ser atingido em alguma dessas coisas que você preza que o ciúme se manifesta como estratégia de defesa. E não é para menos: ser traído, ter um amigo que prefere outra companhia, usar um sapato rasgado ou camisa manchada, ver o autor que lhe ensinou a pensar em um livro com páginas a menos são coisas que depõem contra o valor que você dá a si mesmo.

No caso específico dos relacionamentos humanos, é como se o outro fizesse pouco caso de uma parte sua que você considera importante e depositou nele. Como já dito, o ciúme tem mais a ver conosco que com o outro. Você sente ciúme porque se sente, ou tem medo de se sentir, desvalorizado.

Mas será que todo ciúme é igual? Certamente que não. O ciúme tem sempre um combustível, uma motivação fundamental, que acabamos de esclarecer – mas se manifesta de maneiras diversas em relação ao que denomino objeto primário e objeto secundário.

O objeto primário não tem mistério. É aquela pessoa ou objeto que nos traz o que prezamos: o foco do nosso ciúme. E o secundário? Ele se revela quando um terceiro, visto como ameaça, se aproxima.

É aquele ex-namorado do seu namorado, o primo que disputa a atenção da tia predileta, o irmão que usa suas roupas ou o garanhão da balada – e ganha relevância quando uma situação desencadeadora se apresenta.

Com efeito, não é comum sentir ciúme todo o tempo: precisa haver uma situação concreta para ele aparecer a primeira vez pelo menos, uma situação em que se perceba a ameaça, mesmo que seja apenas uma olhadinha por parte da ou para o amado.

Posteriormente, as contingências de reforço (negativo) – apelando novamente para o linguajar comportamentalista – se encarregam de ver o objeto secundário sempre como ameaça, até o ponto em que a simples presença dele já é suficiente para causar mal-estar. É principalmente nessa fase em que o motivador fundamental do ciúme se mascara. Aí, parece que é o medo de perder a pessoa amada, mas não é bem assim.

Finalmente, o ciúme vai requerer uma punição. É preciso justiça. Alguém tem de pagar. É onde ocorre a explosão, a cara fechada de quem engoliu seco a noite toda, o soco no rosto do garanhão abusado.

Motivação fundamental ligada à autoimagem e autoestima, objeto primário, objeto secundário, situação desencadeadora e exigência de punição. Eis a anatomia do ciúme. Você concorda com isso?

Fica aqui mais um item para reflexão. A quem punir? Animais também têm ciúme, o que, para mim, põe o ciúme no âmbito das coisas naturais – e, eu diria, até como estratégia de proteção do indivíduo e da personalidade. Mas, diferentemente deles, que tendem mais a punir o objeto secundário – o outro bichinho que disputa a atenção do dono, por exemplo –, os seres humanos frequentemente punem o objeto primário. Por quê?