SAÚDE
por João Marinho
Kinshasa, Congo Belga, 1908. Como é tradição no país, um homem vai a um mercado local e compra uma deliciosa mistura para o almoço, muito apreciada na região: carne de macaco.
Depois do banquete, o homem manda seus filhos brincarem na vizinhança e tem uma “tarde quente de sexo” com sua esposa. À noite, com a desculpa de que vai sair com amigos, ele encontra seu amante na aldeia próxima.
O homem não sabe, mas o hábito de comer carne de macaco instalou um novo vírus em seu organismo, que será desconhecido pela ciência nos próximos 70 anos e que iria matá-lo, sua esposa e seu amante: o HIV.
A cena anterior é fictícia, mas podia ser verdade. O HIV, nós sabemos o que é. Ele se tornou conhecido em 1981, quando os Estados Unidos enfrentaram o surto de um tipo raro de câncer – o sarcoma de Kaposi – e de uma misteriosa condição de saúde, caracterizada pela progressiva destruição dos glóbulos brancos do sangue. Pouco tempo depois, ficou claro que os usuários de drogas e os homens gays eram os mais atingidos pela nova doença. Eles eram tão afetados que a nova doença recebeu o nome de GRID (em inglês, deficiência imunológica relacionada aos gays).
Entre 1983 e 1984, dois grupos de cientistas, um liderado pelo Dr. Luc Montagnier, na França, e outro chefiado pelo Dr. Robert Gallo, nos Estados Unidos, isolaram e identificaram o agente viral que causava a doença.
Por um tempo, acreditou-se que o Dr. Gallo era o único ou primeiro descobridor do HIV. A polêmica começou no início dos anos 80, quando, depois de ter isolado o vírus e desenvolvido um teste para detectá-lo nos pacientes, o governo dos Estados Unidos convidou-o a anunciar a descoberta sem o grupo francês, que já tinha escrito um artigo sobre o agente.
Hoje, sabemos que a equipe do Dr. Montagnier foi a primeira a publicar um artigo sobre o isolamento do vírus – e que o Dr. Gallo tinha recebido algumas amostras contaminadas com o vírus “francês”, que estava sendo estudado. Atualmente, reconhece-se que tanto Luc Montaigner quanto Robert Gallo são os descobridores – e também o Dr. Jay Levy, que, concomitantemente, tinha isolado o vírus na Universidade da Califórnia, mas permaneceu fora da polêmica.
Não obstante, o anterior HTLV-III, que havia sido nomeado assim pelo Dr. Gallo, tornou-se o HIV (em inglês, vírus da imunodeficiência humana). A doença, por sua vez, foi rebatizada como aids (em inglês, síndrome da imunodeficiência adquirida) e mostrou que não era “relacionada aos gays”, afinal: ela se propaga através de fluidos sexuais, sangue e leite materno.
Se você leu este artigo até agora, a história do quarto ao oitavo parágrafos é certamente bem conhecida por você – mas o que dizer de Kinshasa, 1908, carne de macaco e HIV? Por que começamos por aí? Na verdade, há uma grande lacuna na história do HIV para a maioria das pessoas, o que as levou a acreditar que a aids é uma doença muito nova, que nasceu nos anos 80 e surge devido a comportamentos sexuais libertários – e, por isso, um tipo de punição criada por Deus, de acordo com algumas visões religiosas.
Na verdade, entre 2007 e 2008, um grupo de cientistas liderados pelo Dr. Michael Worobey, da Universidade do Arizona em Tucson, publicou dois artigos que relataram a descoberta da história prévia do HIV – e da aids.
Hoje em dia, a tese mais aceita sobre a origem do HIV é um vírus semelhante que ataca mais de 30 espécies de primatas africanos: o SIV (vírus da imunodeficiência símia). As duas principais cepas do HIV – o HIV-1, que causa a doença pandêmica em todo o mundo; e o HIV-2, que sobrevive principalmente na África – nasceram de uma mutação do SIV que existia em dois grupos de chimpanzés. Isso foi provado por análise genética de ambos os vírus, HIV e SIV. Acredita-se que a migração do SIV para os seres humanos e a mutação que originou o HIV tenham vindo do hábito milenar de comer carne de macaco na África Central.
O primeiro artigo da equipe de pesquisadores da Universidade do Arizona foi publicado em 2007 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. Usando análise genética de pessoas infectadas nos primeiros anos, eles traçaram a rota do HIV pelo mundo.
Depois que nasceu na África Central, o HIV se espalhou pelo continente e foi transmitido para os haitianos que estavam na África convidados por governos para trabalhar, devido ao desenvolvimento urbano das cidades africanas. Acredita-se que o vírus tenha viajado para o Haiti em 1966 e entrado nos Estados Unidos em 1969, devido à imigração haitiana. Dos Estados Unidos, a expansão continuou pelo globo.
O segundo artigo foi publicado em 2008 na revista Nature. Nessa pesquisa, o Dr. Worobey e seus colegas analisaram as duas amostras mais antigas de sangue contendo HIV: uma é de 1959 e pertence a um homem que morreu em Kinshasa, ex-Congo Belga e atual República Democrática do Congo; a outra pertence a uma mulher da mesma cidade. A data da amostra: 1960.
O Dr. Worobey e seus pesquisadores descobriram que ambos os vírus se originaram de um mesmo hospedeiro humano, que se acredita ter vivido entre 1884 e 1924. Eles até arriscaram uma data para o nascimento do HIV: 1908. É quando nossa história começa.
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