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Passivo, eu?


Não se discute a importância dos passivos no universo gay. Sem eles, nossas relações perderiam muito da magia – mas, ainda assim, o passivo é vítima de um preconceito velado, especialmente quando não se interessa por nenhuma “troca” de papéis.



por Vides Júnior
jornalista

Mesmo quando temos um casal versátil, quase sempre haverá um passivo e um ativo numa boa e segura penetração, ainda que apenas naquele momento. É claro, há infinitas outras maneiras de levar uma transa ao clímax, mas essa dá uma dimensão da importância do papel sexual passivo.
Entretanto, não é segredo para ninguém que “dar a bunda” é algo freqüentemente desvalorizado em conversas cotidianas, no tratamento dispensado às pessoas e nas famosas piadinhas de mau gosto, até mesmo entre gays. Isso piora quando o cara se assume 100% passivo. A cena é corriqueira: metade dos amigos fica inconformada, e uma pergunta infeliz paira no ar: “para que você usa seu pinto?”.
Surpreendentemente, as piores críticas vêm de muitos que se dizem 100% ativos. É como se não precisassem do passivo para exercer seus próprios papéis e se esquecessem de que o membro masculino pode ser fonte de muitos e diferentes prazeres. Afinal, quer coisa mais gostosa do que “comer” alguém e vê-lo de membro em riste?

Fugindo dos estereótipos

Enquanto eu escrevia esta matéria, caí num erro comum: associar passividade e efeminação. Felizmente, deu tempo de reescrever tudo.
Se fizer um esforço, o fã de Sex Boys vai se lembrar do biótipo de muitos passivos que passaram por nossos filmes: corpo malhado, cara de briguento, voz grossa – e um passivo declarado.
Isso não é exceção à regra, simplesmente porque não há regra! Há ativos machões e efeminados, há passivos machões e efeminados e muitos graus entre eles. Todos têm seu lugar ao sol e merecem respeito.
Lucas, 22 anos, e André, 25, são ativos, mas divergem quando o assunto é passividade. “Prefiro os passivos efeminados. [...]. Quanto mais efeminado ele fica, [...] mais eu fico excitado!”, diz Lucas. André pensa diferente: “Eu estou comendo um homem [...] Tem coisa mais gostosa que ouvir aquela voz grossa, os dentes trincados [...]? É como se você estivesse pegando alguém à força!”.
Quem segue a lógica social dos héteros pensa conhecer as preferências de nós, gays. Muitas vezes, até nós mesmos caímos nesses erros, julgando os semelhantes pelas aparências. O casal Juliano, 30, e Rogério, 22, é um dos exemplos. Juliano tem 1,55 m de altura, é alemãozinho, magro, repleto de trejeitos e usa roupas fashion. Já Rogério é um morenão de 1,80 m, corpo malhado, voz grossa, sobrancelha cerrada e peito peludo. Muitos heteros não acreditam que ele é gay.
Quem é o passivo e o ativo? “Isso nos diverte muito!”, conta Juliano. “Todos juram que eu sou o passivo da relação, quando é exatamente o contrário”. “Nunca penetrei alguém na minha vida. Não tenho vontade [...]. Por enquanto, me satisfaço plenamente com um bom membro duro deslizando dentro de mim”, completa Rogério.

O outro lado

Ok, mas, e se o passivo é efeminado e condiz, em maior ou menor grau, com a imagem que se faz dele? Aí, a censura e as brincadeiras tornam-se verdadeiras “pérolas” do preconceito. “Por que você não vira travesti?”. “Nossa, você devia ter nascido mulher!”. “Você é tão bonito para ser passivo!”. Esses comentários já foram exaustivamente ouvidos por Fábio, 26 anos, que vive em São Paulo. “Na hora da cama, ninguém reclama, mas, pra enfrentar a sociedade, tudo muda e muitos têm vergonha da sua condição. Eu não”, diz ele.
Uma parte disso tudo vem da nossa infância, marcada por uma profunda desvalorização do feminino, já que não há, em si, nada de errado em ser efeminado.
Por sinal, é de cedo que começamos a ouvir: “Mas você faz o papel da mulher?”. É uma falsa questão. “Ninguém faz o papel de mulher. O que os héteros precisam compreender é que nossos papéis não são idênticos aos deles”, reforça André.

A dita-dura

Como se não bastasse a visão controversa dos héteros, surgem agora os gays adeptos do que o nosso editor, João Marinho, chama de “ditadura da versatilidade”. Eles defendem, implicitamente ou explicitamente, que todo gay deve ser versátil (ou “flex”, como alguns dizem em analogia aos carros bicombustíveis) – e tendem a tratar os que se identificam como somente ativos ou somente passivos como pessoas que têm algum problema ou que simplesmente defendem uma transposição do padrão heterossexual de relacionamentos para a realidade gay.
A psicóloga Andréia Veralva afirma que os pilares desse novo preconceito surgem na adolescência. “O gay que cresce em meio à turminha de héteros vira vítima da chacota dos outros. [...]. Quando cresce, acredita que é culpado de seus próprios desejos, passa a ver a passividade como algo errado e busca fugir dessa condição, apelando para a versatilidade, mesmo sem gostar”.
É claro que isso não quer dizer que não existam versáteis de verdade. Claro que há, e eles costumam, inclusive, ser maioria entre os gays. O que se critica é o fato de a versatilidade atingir um status tal que passa a ser um tipo de imposição ou necessidade para quem não é versátil.
Na raiz de tudo, está uma característica que falta na fauna gay: o orgulho. Não falamos simplesmente de vestir a bandeira do arco-íris e desfilar na Parada Gay. Devemos, sim, vestir o manto da dignidade, erguer a cabeça quanto às nossas próprias preferências e respeitar as demais.
Felizmente, nem todos são vítimas dessa “ditadura”. Mesmo entre os ativos, há quem defenda a preferência inversa, como David, 32 anos: “Sou casado há sete anos com um cara 100% passivo. Se ele fosse de outra forma, não haveria relacionamento”.

Conclusão

Seja qual for a sua preferência, leitor, tenha certeza de uma coisa: o orgulho de si próprio é a receita para que você seja feliz. Se sucumbirmos à vergonha e ao descaso, de nada adiantará lutarmos por nosso lugar na sociedade. E viva as diferenças!